Desigualdade racial na educação brasileira
Matéria publicada no Observatório de Educação – Instituto Unibanco
De caráter estrutural e sistêmico, a desigualdade racial no Brasil é inquestionável e persiste devido a fragilidade de políticas públicas para o seu enfrentamento. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) enquanto os pretos e pardos representam 56% da nossa população, a proporção deste grupo entre todos os brasileiros abaixo da linha de pobreza é de 71%, já a fração de brancos é de 27%. Quando olhamos os números de extrema pobreza, a discrepância quase triplica: 73% são negros e 25% brancos. Nessa perspectiva, construir uma sociedade mais igualitária requer a compreensão do papel de cada estrutura socioeconômica na reprodução do racismo para elaborar estratégias efetivas de enfrentamento.
Na educação, essa desigualdade é evidente e o combate a ela é indispensável para qualquer mudança, de modo que sem uma educação efetivamente antirracista não é possível pensar em uma sociedade igualitária.
O que é desigualdade racial e como ela acontece na educação brasileira?
Na sociedade brasileira as diferenças sociais entre brancos e negros são nítidas no cotidiano. Além do aspecto econômico, no qual pessoas pretas e pardas (a combinação desses grupos forma a classificação negra, segundo o IBGE) são maioria entre as que possuem rendimentos mais baixos, a persistência de situações de maior vulnerabilidade, indicada por evidências nos campos da educação, saúde, moradia, entre outros, mostram evidente desequilíbrio na garantia de direitos em prejuízo para a população negra. É possível também observar a sub-representação entre líderes de equipes nas empresas, juízes e políticos.
O que dizem os dados
De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Educação 2019), do IBGE, a taxa de analfabetismo entre pretos e pardos caiu em 2022 para o menor nível (7,4%) histórico desde 2016, mas ainda é mais do que o dobro da registrada entre brancos (3,4%). De 2019 para 2022, a taxa de analfabetismo entre as pessoas pretas ou pardas de 15 anos ou mais recuou de 8,2% para 7,4% no país. Foi a primeira vez que o indicador ficou abaixo de 8%.
O mesmo levantamento demonstra a desigualdade no acesso à educação. Em 2022, dos jovens de 14 a 29 anos fora da escola 70% eram negros e 28% brancos, índice que teve uma pequena variação na comparação com 2019, quando 71% dos jovens fora da escola eram negros, e apenas 27% destes brancos.
Em 2018 o estudo “Desigualdades Sociais por Raça ou Cor no Brasil” do IBGE, demonstrava uma queda no abandono escolar entre estudantes brancos e uma ligueira alta entre os negros.
A partir destes dados, o estudo “Diagnóstico do abandono e da evasão escolar no Brasil”, do Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social, aponta que as chances de um jovem preto ou pardo de 20 a 24 anos estar fora da escola sem ter concluído o ensino médio é 55% maior do que a de um jovem branco.
Durante a pandemia, sabemos que o índice de abandono escolar em toda a educação básica, que vinha em queda até 2019, voltou a subir principalmente no ensino médio, onde a taxa mais que dobrou de 2020 para 2021: passou de 1,8% para 5%, o que pode ter sido ainda mais pronunciado entre os estudantes negros.
Além do acesso à educação, a desigualdade racial tem efeitos sobre o direito à aprendizagem como demonstra um recente estudo realizado pelo Iede (Interdisciplinaridade e Evidências no Debate Educacional) a pedido da Fundação Lemann. A pesquisa demonstrou através de dados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) que em todos os estados do país, tanto no 5º quanto no 9º ano, em todas as disciplinas avaliadas (Língua Portuguesa e Matemática) há diferenças consideráveis entre o percentual de estudantes negros e brancos que atingem índices adequados de aprendizagem.
Os pesquisadores ainda dividiram as escolas pelo nível socioeconômico (NSE), e entre aquelas de mais alto NSE as desigualdades raciais se mantêm. Ao serem avaliados em Matemática, entre os alunos de nível socioeconômico alto, 34,4% dos brancos têm aprendizado adequado, entre os pretos, 17,3% (diferença de 98,8%). Entre os de baixo NSE, 15,8% dos estudantes brancos possuem aprendizado adequado contra 8% (diferença de 98%) dos pretos. As disparidades raciais mesmo em contextos econômicos distintos. Dessa forma, não cabe confundir as desigualdades sociais com a exclusão sistêmica provocada pelo racismo que alija de maneira estrutural pessoas negras do acesso à direitos.
Além de uma análise profunda dos dados, conhecer os aspectos históricos do Brasil é fundamental para compreender a origem e os motivos da perpetuação da desigualdade racial na educação do nosso país.
Aspectos históricos do racismo no Brasil
Última nação do ocidente a abolir a escravatura, o Brasil, entre o fim do século XIX e início do XX, não criou nenhuma condição para a inserção digna da população negra na sociedade. Ao contrário, diversas obras, políticas e instituições disseminaram a ideia de um país mestiço, no qual o convívio é harmonioso entre as diferentes raças.
Assim, o conjunto de preconceitos direcionados à população negra encontra-se enraizado no inconsciente e na subjetividade de indivíduos e instituições, se expressando em ações e atitudes discriminatórias regulares, mensuráveis e observáveis. Violência policial atingindo na grande maioria das vezes a população negra, maior número de vítimas de homicídios e todos os dados de desigualdade na educação já mencionados são alguns exemplos, permanecendo assim o racismo estrutural em diversos espaços da sociedade brasileira.
Ao mesmo tempo, muitos avanços foram conquistados ao longo das últimas décadas a partir da luta histórica dos movimentos negros, que muitas vezes não é visibilizada devido ao mesmo racismo que ousa enfrentar.
Conforme apontou o antropólogo, professor da Universidade de São Paulo (USP), Kabengele Munanga, parte da mudança está na desconstrução do mito da superioridade branca e da inferioridade negra e ameríndia que atravessa todos os campos da educação, informação e imagem, reproduzidas cotidianamente e interiorizadas por toda a sociedade. De acordo com o antropólogo, é na educação principalmente que se constroem essas imagens estereotipadas e discriminatórias do sujeito e da população negra, de modo que apenas a prática educativa tem o poder de desconstruí-las: “Só a própria educação é capaz de desconstruir os monstros que criou e construir novos indivíduos que valorizem e convivam com as diferenças.”
O impacto do racismo no acesso à escola
Esse racismo estrutural também segue presente nas instituições ligadas à educação. Hoje em dia, as escolas possuem marcas dessa história e os indicadores educacionais são reflexo de uma situação muito comum para os jovens negros: a de precisar buscar inserção no mercado de trabalho muito cedo, como forma de colaborar para a subsistência do grupo familiar.
Para a intelectual negra Sueli Carneiro, fundadora do Geledés – Instituto da Mulher Negra, o racismo estrutural presente nas escolas gera situações traumatizantes para os estudantes negros.
“O pós-abolição não restitui essa humanidade retirada – a escola reitera isso. Não é gratuito que nossas primeiras experiências com o racismo têm a ver com a entrada na escola”, afirma.
Diante de tudo isso, o abandono e o baixo desempenho na educação básica seguem muito mais altos para os estudantes negros, uma situação que ainda carece de políticas públicas efetivas, mas que vinha apresentando avanços, principalmente no âmbito legal, como a Lei 10639 de 2003.
A Lei 10639: História e cultura africanas na sala de aula
Além dos pontos já abordados, a própria construção curricular das escolas favorece a manutenção da desigualdade. Ao longo da construção do sistema educacional brasileiro, a seleção e estruturação dos conteúdos escolares foi organizada por uma perspectiva eurocentrada, na qual a visão da população branca foi priorizada em detrimento das outras etnias e culturas. Assim, os negros, mais da metade da nossa população, não se veem representados nos conteúdos lecionados.
Nessa perspectiva, a Lei 10639, de 2003, foi uma conquista importantíssima para adotar perspectivas mais democráticas e diversas. Construída a partir de inúmeras manifestações dos movimentos negros, a lei estabeleceu a obrigatoriedade de conteúdos sobre a história e cultura africana e afrobrasileira nos currículos da Educação Básica.
Entretanto, um estudo realizado em 2022 pelo Geledés Instituto da Mulher Negra e o Instituto AlanaAbre em uma nova guia aponta que 71% das Secretarias Municipais de Educação realizam pouca ou nenhuma ação estruturada para cumprir a Lei 10639. Os principais entraves mencionados são a dificuldade dos profissionais em transpor o ensino nos currículos e projetos das escolas, além da falta de informação e orientação suficientes. De todas as secretarias pesquisadas, 69% afirmam que a maioria ou boa parte das escolas realiza atividades relacionadas ao ensino de história e cultura africana e afro-brasileira apenas durante o mês ou Semana da Consciência Negra. Além disso, a maioria das secretarias municipais não acompanha indicadores de desempenho dos estudantes por raça.
A BNCC, Base Nacional Comum Curricular, oficializada em 2017 pelo Ministério da Educação, é uma orientadora curricular que prevê uma formação cidadã, inovadora, plural e multicultural, buscando ampliar as referências de mundo dos alunos. Ela traz cinco áreas de conhecimento e, além delas, introduz os Temas Contemporâneos Transversais, TCTs, como ferramentas para explicitar a ligação entre os diferentes componentes curriculares de forma integrada e para que os estudantes possam fazer conexões com situações vivenciadas em suas realidades. Porém, o estudo Diversidade Étnico-racial, Cultura e Cidadania: Diálogos com as Ciências da Natureza, produzido pelo Coletivo de Intelectuais Negros e Negras (CDINN), chama atenção para o fato de o documento da BNCC não mencionar as alterações determinadas pela Lei 10639, desconsiderando a contribuição dos povos e culturas africanas e nativas como parte fundante da formação social brasileira. E defende que a porta de entrada para tratar desta questão em sala de aula seriam os TCTs, trazendo contribuições práticas de como inserir a questão racial na área de Ciências da Natureza e suas Tecnologias, integrada por Biologia, Física e Química.
Os dados nos mostram que ainda há um grande caminho a ser percorrido, pois, sem uma avaliação que coloque a representatividade, o racismo, a diversidade e outros temas em debates alinhados com sujeitos historicamente excluídos, não colocaremos a discussão das relações étnicorraciais no centro do processo de construção curricular. E a escola pode continuar sendo apenas mais um espaço de reprodução de desigualdade racial na educação, inclusive a instigar situações e discussões violentas entre diferentes grupos raciais.
O papel da gestão escolar no combate à desigualdade racial
A educação antirracista é um conjunto de ações que não se limitam a resolver os conflitos cotidianos motivados por questões raciais. Assim, construir essa educação implica necessariamente a revisão do currículo, garantindo sua pluriversalidade, bem como a composição de um corpo docente etnicamente diverso e formado em competências curriculares que abranjam a cultura e a história de povos africanos e ameríndios.
A educadora Bárbara Carine, professora adjunta do Instituto de Química da UFBA, e uma das fundadoras da Escola Afro-brasileira Maria Felipa, em Salvador, vai além e diz que, não apenas os professores, mas todos os colaboradores das escolas devem receber uma formação de letramento racial.
O gestor tem papel fundamental para desenvolver meios que possibilitem a construção dessa representatividade e a redução do preconceito de forma mais ampla, estabelecendo uma educação antirracista mais efetiva do que a simples inserção de conteúdos nos currículos.
O papel do docente e o acesso ao Ensino Superior
Apesar do avanço no debate do racismo e da valorização da diversidade cultural proporcionado pela Lei 10639, ela ainda encontra algumas barreiras, sobretudo na rede pública. Além da falta de livros didáticos adequados aos temas, problemas na formação de professores contribuem com as dificuldades já enfrentadas.
Em muitos casos, a formação curricular das universidades também possui uma perspectiva eurocentrada, visto que a construção dela tem como base pesquisadores brancos, já que a presença de outras etnias foi muito pequena no meio acadêmico durante vários anos. A partir de ações afirmativas, como as cotas para ingressos de negros, indígenas e pessoas de baixa renda nesses espaços, esse cenário apresentou uma melhora.
Fundamentais para proporcionar acesso ao Ensino Superior a esses grupos, as cotas foram instituídas nacionalmente nas universidades públicas em 2012, com a Lei 12711. Além de buscar tornar o acesso ao ambiente acadêmico mais equânime, a presença de negros e indígenas é fundamental para promover a valorização da diversidade cultural e construir conhecimentos que colaborem com a aplicação da Lei 10639, ajudando a promover uma educação antirracista nas escolas do Brasil.
Em 2021, a Universidade de São Paulo (USP) atingiu pela primeira vez um índice superior a 50% de estudantes oriundos de escolas públicas. Foram 51,7%, dentre os quais 44,1% autodeclarados negros e indígenas. Para aumentar a inclusão, a Universidade implementou algumas mudanças. A partir do vestibular de 2023, todos os candidatos concorrem às vagas de Ampla Concorrência (AC), que não têm nenhum tipo de reserva, mas os que cursaram integralmente o Ensino Médio em escolas públicas também poderão disputar as vagas destinadas à Política de Ação Afirmativa Escola Pública (EP) e os vestibulandos com esse perfil e que se autodeclaram pretos, pardos e indígenas poderão, ainda concorrer também às vagas destinadas à Política de Ação Afirmativa Pretos, Pardos e Indígenas (PPI). Independentemente da categoria, todos os candidatos serão classificados de acordo com sua nota no vestibular. Dessa forma, serão preenchidas primeiramente as vagas para Ampla Concorrência, depois as vagas para Escola Pública, seguindo os critérios para essas vagas, e só depois as vagas para PPI, ou seja, os estudantes enquadrados nas cotas que tiverem melhor desempenho já serão automaticamente convocados na primeira lista. Outra mudança é a instalação da comissão de hetero identificação já no processo de matrícula, que avalia os candidatos autodeclarados pretos, pardos ou indígenas por meio de fotografia enviada pelo aluno no momento da inscrição e por imagens capturadas pelo programa de reconhecimento facial nos dias de prova. As duas fotos são comparadas e, se houver dúvida, o candidato é convocado para uma entrevista. As cotas são uma política pública eficaz no sentido de democratizar e ampliar o acesso à educação superior.
Preparação docente para uma educação antirracista
Naturalmente, o impacto dessa democratização de acesso ao Ensino Superior terá impactos na educação básica no longo prazo, sobretudo com a inclusão de mais professores negros. De acordo com um estudo de 2016 da Universidade John Hopkins, professores brancos possuem menos expectativas positivas quanto ao futuro profissional e acadêmico de alunos negros, o que favorece o desenvolvimento de situações de conflitos ligados a discriminação racial.
Enquanto isso, no Brasil, entre os cursos superiores com maior número de matrículas, o de Pedagogia é onde aparece o maior número de estudantes pardos e pretos, que representam 47% dos alunos, em 2020, segundo o IBGE.
Mesmo assim, ainda é fundamental que os gestores das escolas desenvolvam ações de preparação dos professores para explorar os temas previstos na Lei 10639, promover debates relacionados à diversidade cultural e saber como identificar e minimizar a ocorrência de situações de racismo.
Cenário Atual: Pós-pandemia e o Agravamento das Desigualdades
Ao contrário do que foi especulado por alguns setores da sociedade, a pandemia da COVID-19 não afetou a todos os grupos de maneira equânime. Cada vez mais estudos demonstram como pessoas negras, povos originários, pessoas com deficiência e mulheres foram e ainda estão sendo impactadas pelos efeitos desta crise sanitária de maneira desproporcional. O racismo estrutural e sistêmico se articulou aos diferentes campos sociais, econômicos e políticos afetados direta e indiretamente pela pandemia.
Um estudo da Fundação Carlos Chagas entre os adolescentes de 15 à 17 anos de idade demonstrou que, enquanto 14,2% dos alunos brancos não receberam atividades escolares em casa durante a interrupção das aulas presenciais, este índice foi de 40,6% entre estudantes negros.
O aprofundamento das desigualdades raciais no acesso à educação no contexto da pandemia também é evidenciado no abandono e evasão escolar. O Fundo das Nações Unidas para Infância (Unicef) publicou um estudo sobre os impactos da Covid-19 no Cenário de Exclusão Escolar no Brasil e demonstrou que dentre os estudantes de 15 a 17 anos que estão fora da escola, mais de 70% são pretos e pardos.
Soluções de gestão para o combate à desigualdade racial na educação
Como você pode notar, a desigualdade racial na educação brasileira é complexa e com muitos desafios para ser combatida. Entretanto, muitos profissionais da educação vêm buscando e implementando diferentes estratégias que buscam valorizar a diversidade e combater o racismo. Entre as iniciativas estão:
1. Diálogo e valorização da cultura negra
2. Oficinas e exposições extraclasse para o combate ao preconceito
3. Participação estudantil como ferramenta de motivação
4. Representações negras na literatura e nos desenhos animados
5. Enfrentando Desigualdades Raciais dentro da Sala de Aula
6. Desigualdade e Recuperação da Aprendizagem na Pandemia
Entendemos que é necessário realizar projetos para preparar os professores, construir currículos que proponham a valorização da diversidade cultural e criar ambientes próprios para uma educação antirracista nas escolas.
É evidente que o combate a desigualdade na educação é indispensável para qualquer mudança, de modo que sem uma educação efetivamente antirracista não é possível pensar em uma sociedade igualitária.