Inteligência Artificial nas eleições: inovação ou risco democrático?
Em um momento em que a tecnologia avança a passos largos, a adoção de ferramentas de Inteligência Artificial (IA) em campanhas eleitorais levanta questões cruciais sobre os rumos da democracia. A discussão, que perpassa do marketing político à jurisprudência eleitoral, mostra que a IA não é e nem pode ser encarada como neutra.
O uso de Inteligência Artificial em campanhas eleitorais é permitido pela Justiça Eleitoral, desde que obedecidas as regras de transparência previstas nas resoluções do TSE. Isso significa que qualquer vídeo, imagem, áudio, texto ou peça de propaganda produzida total ou parcialmente por ferramentas de IA deve ser claramente identificado com avisos como “conteúdo criado por I.A.” ou “conteúdo gerado por I.A.”. A obrigatoriedade busca garantir que o eleitor saiba a origem do material que consome, evitando manipulações, aumentando a confiança no processo eleitoral e permitindo a fiscalização adequada por parte da sociedade e das autoridades.
A promessa de inovação e modernização
Para Ana Lopes, jornalista e especialista em comunicação política a IA oferece um repertório poderoso de recursos para modernizar campanhas e aproximar candidatos e eleitores de formas até então impensáveis:
“A IA pode potencializar a segmentação das mensagens, gerar conteúdos mais rápidos e até ajudar na identificação de temas de interesse dos eleitores”, observa Ana.
De fato, segundo estudos acadêmicos, há aspectos da IA que podem contribuir com a transparência, alcance e eficiência nas campanhas, por exemplo, na automatização de tarefas repetitivas, no uso de chatbots para responder dúvidas comuns de eleitores e no mapeamento de preferências e perfis eleitorais com base em dados de comportamento online.
Em um contexto de comunicação de massa e canais digitais saturados, a IA seria capaz de trazer mais agilidade, eficiência orçamentária e assertividade para campanhas, especialmente para candidatos com menos recursos, o que, em tese, poderia nivelar o campo eleitoral.
Além disso, para quem produz conteúdo a IA poderia representar uma ferramenta estratégica para elaborar narrativas, adaptar linguagem para diferentes públicos e monitorar o impacto das mensagens em tempo real.
Os riscos para a democracia: manipulação, desinformação e opacidade
Por outro lado, Caroline Uehara, advogada eleitoralista, alerta que a IA também representa riscos concretos quando incorporada às campanhas:
“Quando usada para criar deepfakes, disparar fake news em massa ou segmentar eleitores com base em dados sensíveis, a IA ameaça a integridade do processo eleitoral e a soberania do voto”, afirma.
Esses alertas não são exagero: há evidências de que as IAs têm sido usadas globalmente para práticas anti-democráticas, desde bots e algoritmos para espalhar desinformação até deepfakes com rostos e vozes falsificadas de políticos. Um exemplo preocupante ocorreu em 2024: estudos realizados por institutos de pesquisa eleitoral apontaram que campanhas utilizaram vídeos e áudios gerados por IA com resultado de “deepfakes”, para atacar adversários e difundir informações falsas.
Além do risco da manipulação direta do eleitorado, Caroline lembra que a IA pode minar a confiança nas instituições democráticas. Quando o eleitor percebe que o debate político está sendo manipulado digitalmente e possivelmente sem transparência cresce o descrédito nas eleições como instrumento legítimo de escolha.
Por fim, há o problema da opacidade dos algoritmos: muitas IAs operam em “caixas-pretas”, o que dificulta rastrear quem programou o sistema, que dados foram utilizados, como foram segmentadas as mensagens e quais foram os impactos no comportamento real dos eleitores.

Brasil — eleições de 2024 e judicialização da IA
Segundo levantamento feito por Aos Fatos em parceria com ICL Notícias e o Clip – Centro Latinoamericano de Investigação Jornalística, a Justiça Eleitoral julgou 43 processos relacionados ao uso de IA na pré-campanha até junho de 2024. Destes, 32% foram considerados irregulares. Em um mapeamento mais amplo, até o primeiro turno de 2024 houve pelo menos 159 casos envolvendo propaganda com IA entre deepfakes, vídeos falsos, áudios manipulados e peças de desinformação. Em algumas cidades, houve o absurdo de “ressuscitar” políticos falecidos para declararem apoio a candidatos.
Entre os tipos de abuso, destacam-se: vídeos com falsos telejornais, “confissões” fabricadas por candidatos adversários, imagens manipuladas (inclusive ataques via “deepnudes” para defamat candidatas), e divulgação de materiais adulterados em redes sociais.
O arcabouço legal e os esforços de regulamentação
Diante desses riscos, o sistema eleitoral brasileiro vem tentando se antecipar. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) promulgou resoluções que proíbem expressamente o uso de deepfakes, conteúdos gerados por IA com o intuito de manipular eleitores, bem como responsabiliza plataformas e candidatos em caso de disseminação de desinformação.
Segundo Caroline Uehara, a regulação é essencial, mas não suficiente. “Precisamos de fiscalização real, transparência das plataformas e letramento midiático”, defende. Para ela, a combinação de leis + educação de eleitores + monitoramento independente pode tornar o uso da IA mais responsável e compatível com os valores democráticos.
No contexto de leis, o debate legislativo sobre IA, tecnologia e propaganda política avança, apontando para a necessidade de regras mais claras sobre dados, segmentação de público e prestação de contas.
Entre risco e oportunidade: o papel da sociedade e do jornalismo
Para aqueles que trabalham nas campanhas e para candidatos a presença da IA nas eleições exige uma postura crítica e ética. A IA pode amplificar desigualdades se for acessível apenas a campanhas bem financiadas.
Ana Lopes acrescenta que é fundamental garantir transparência sobre o uso de IA em conteúdos eleitorais (quem produziu, com que dados, com que intenções). Deve-se também investir em alfabetização midiática para que o eleitor, seja no Brasil ou no mundo, entenda que nem tudo o que circula digitalmente é real ou confiável e a mídia e o jornalismo eleitoral precisam atuar como vigia independente, verificando e denunciando mau uso da tecnologia.
“A tecnologia não substitui a ética, ela a amplia. Cabe a nós escolher se a IA será instrumento de democracia ou de manipulação”, pondera Ana Lopes
A IA nas urnas é escolha e responsabilidade coletiva
Os dados mostram que, no Brasil, o uso indevido da IA nas eleições deixou de ser mera ameaça teórica: já há registros concretos de abusos identificados e punidos judicialmente.
No contexto internacional se evidencia que o problema vai além do Brasil: a manipulação digital via IA representa um desafio global à democracia, exigindo regulação, vigilância e inovação técnica em detecção.
A inteligência artificial nas eleições representa tanto a possibilidade de modernizar a comunicação política quanto um sério risco à integridade democrática. Como sociedade, não temos garantias de que a tecnologia será usada com responsabilidade. O que temos, e devemos exercer, é vigilância: por meio de regulação, fiscalização, mídia livre, educação eleitoral e participação cidadã.
Se a IA será aliada da democracia ou de quem pretende corroer a confiança nas instituições, dependerá menos da tecnologia do que de nós — jornalistas, advogados, eleitores, observadores e legisladores.
Ana Lopes é jornalista – formada em Comunicação Social, Pós Graduada em Políticas Públicas e em Ciência Política, sócia da AL9 Comunicação Política
Caroline Uehara é advogada – formada em Direito, Pós Graduada em Direito Eleitoral e Direito Digital, Cibersegurança e Proteção de Dados, sócia da AL9 Comunicação Política.
Fonte AL9 Comunicação

